DEPOIS DO POVO, A CULTURA
Por Amanda DIniz
A cultura é um conceito que pode ter diversas vertentes. A mais aceita e conhecida é a antropológica, que também é a mais genérica. Essa teoria diz que cultura é tudo aquilo que "inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade". Essa definição foi diversas vezes contestada, problematizada e reformulada. Tomando cultura como uma forma de manifestação artística de determinado povo, podemos dizer que as crenças e padrões são transmitidos historicamente, incorporados em símbolos e repassados de geração em geração por determinado povo.
A cultura desde sempre é associada ao conceito e civilização, desenvolvimento e indústria. Esta comparação foi bastante comum na França e na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, onde cultura se referia a um ideal de elite. Isso acontece até os dias atuais e reflete diretamente no mundo da moda.
A apropriação cultural, termo bastante reforçado no século XXI, pode ser definida como a adoção de elementos específicos de uma cultura por outra totalmente diferente sem qualquer tipo de responsabilidade histórica. Esse termo remete a aculturação de povos, implicando na adoção de simbologias de gerações marginalizadas por uma cultura dominante e opressora. No mundo da moda ela é caracterizada pela introdução de formas de vestir ou adornos pessoais. Estes elementos, uma vez removidos de seus contextos culturais, podem assumir significados muito divergentes dos originais.
Quando se existe a oportunidade de lucrar, a imagem muda. O que antes era feio, sujo e "demoníaco" passa a ser chique, fashion, vira moda. Para que isso aconteça, os protagonistas também são substituídos. Se embranquece os símbolos e atores, o capitalismo bota sua nova cara nas paradas de sucesso, passando por cima de toda a história e significados do adereço, estilo ou vestimenta, esvazia de sentido uma cultura com o propósito de mercantilização ao mesmo tempo em que exclui e torna invisível quem produz.
Um exemplo claro disso foi a famosa campanha da marca Arezzo, onde trouxe Cláudia Raia, Mariana Ximenes e Patrícia Pilar, três atrizes brancas, vestidas em roupas de origem negra, usando adereços advindos do povo africano, embranquecendo e tornando "possível" a aceitação dos produtos da loja com seus rostos claros e finos.
Sobre a apropriação cultural, o estudante negro Luís Antônio, reflete que não se deve culpar quem consome os produtos oferecidos pelas lojas "As grandes empresas é que deveriam ser penalizadas por isso. Não acho que as pessoas que usam tem culpa, só usam porque o produto tá alí, tá na moda por conta da mídia. A questão é que as empresas, a moda, todo esse meio tem que valorizar a cultura do outro e dar espaço para as pessoas certas. Tem que se respeitar a história."
É importante lembrar que a apropriação cultural não é reconhecida por todos e o motivo para que isso exista é a mistura de povos, de raças, culturas e de símbolos. Outro motivo para que exista essa vertente contrária a apropriação cultural é a questão do "tornar visível algo marginalizado". Estes argumentos são facilmente refutados pois o uso da cultura do outro não se transforma em respeito e em direitos na prática do dia-a-dia, além disso, não se existe intercâmbio cultural quando também é reconhecida uma hierarquia entre as culturas, tendo uma superior e outra inferior.
Para o historiador Pedro Salles, a questão da apropriação cultural tem uma base no molde de dominação que o Brasil foi submetido, "O europeu é o modelo, né? Existe uma hierarquia. Nós temos um histórico de invasão, matança, destruição dos povos nativos; Foram 300 anos de escravidão, de marginalização, de preconceito no nosso país. O Brasil é racista e intolerante, não existe isso de povo misturado, feliz, receptivo, e amigável. O que existe aqui é a persistência dos opressores e oprimidos. Isso acontece na indústria o tempo todo, esse desrespeito cultural, essa apropriação mesmo".
”E o que as pessoas que se apropriam dessa cultura, que gostam tanto dessa cultura, tão fazendo de fato na contribuição, na luta para melhorar a vida dessas pessoas? As lutas tem que ser valorizadas e apoiadas."
Falar sobre apropriação cultural significa apontar uma questão que envolve um apagamento de quem sempre foi inferiorizado e vê sua cultura ganhando proporções maiores, mas com outro protagonista. É diferente, por exemplo, ser branco e usar um turbante/dread por estética, por modismo e ser negro usando os mesmos adereços. Os olhares são outros, exatamente porque quando usado pelo protagonista daquela tradição, o símbolo ganha outro significado, ele é político, de resistência e empoderamento.
Iaracy Melo, formada em moda e especializada em moda africana enfatiza a importância da valorização, do reconhecimento da luta dos povos alvo de apropriação. "Quando a gente discute apropriação cultural não é o que cada um pode usar. As pessoas podem, podem ir na loja e comprar. O debate nunca foi esse. Eu acho que a questão é: esses grupos sociais das culturas que estão sendo apropriadas, o que é que eles estão ganhando, o que elas estão recebendo em troca da apropriação? E o que as pessoas que se apropriam dessa cultura, que gostam tanto dessa cultura, tão fazendo de fato na contribuição, na luta para melhorar a vida dessas pessoas? As lutas tem que ser valorizadas e apoiadas".
O mundo da moda e, consequentemente, a mídia, não estão preocupados com nada que não seja o mercado, o lucro. Dar valor às peças indígenas, africanas, rastafari não é o objetivo das grandes marcas. Isso fica evidente em diversas situações como novelas onde o figurino da protagonista branca sustenta um turbante na cabeça, ou que a loira "rebelde" usa seu cabelo liso e claro num dread curto. Esses meios de massa não estão se importando se a cultura é a marca de um povo, por isso a necessidade de reafirmar o protagonismo. Por fim, é necessário bater na tecla de que determinados povos mantém a sua cultura, mesmo que ela tenha sido intensamente perseguida, e não usar tais produtos é uma forma de valorizar as lutas e entender que aquela estilo, aquela "moda", aquele objeto, pertence a um povo e tem uma história.